RAUL SEIXAS: EU SOU. Série faz juz à lenda.

RAUL SEIXAS: EU SOU. Série faz juz à lenda.

Que a existência apresenta-se de forma complexa e, por vezes, dura… raras pessoas afirmariam o contrário. De todo modo, existem indivíduos que buscam constantemente uma forma de transcendência. Muitos o fazem de forma errática, tortuosa ou até mesmo enlaçando-se com a autodestruição. A bem da verdade, transcender (invariavelmente) exige a morte do Ser, a fim de que uma nova realidade se apresente, seja de ordem cognitiva, religiosa ou metafísica. E pouco importa se, de fato, a totalidade da toca do coelho será desbravada. A inquietação é o imperativo dessas pessoas. É não contentar-se com o pouco que a vida oferece. E, nesse processo, visto por muitos como tolice, loucura, afronta e desrespeito, tantas outras almas, para o bem ou para o mal, são contaminadas.

Raul Santos Seixas foi uma dessas criaturas e nos abrilhantou com uma discografia ímpar e com seus comportamentos provocativos. Não à toa, ainda que quase 36 anos desde sua morte já tenham passado, Raul continua atual, incômodo e necessário. E, fazendo jus ao pai do rock brasileiro, a Globoplay lançou a série Raul Seixas: Eu Sou. Dirigida com carinho por Paulo Morelli e tendo no elenco nomes como Ravel Andrade, João Pedro Zappa e Amanda Grimaldi.

O elenco como um todo e os demais profissionais envolvidos entregaram um primor de arte. No mais puro sentido. Claro que situações, contextos e experiências pessoais e históricas poderiam ter sido mais bem trabalhadas. Mas como abarcar e dissecar uma mente fervilhante que nunca esteve só e que também foi fruto de cada interação que teve em vida, ao longo de 8 episódios? Posto isso, tratava-se de uma tarefa hercúlea. Nesse sentido, eu atesto que esse grupo realizou 11 desafios.

Ravel Andrade incorpora de maneira quase mediúnica Raul Seixas. Na qualidade de ator, devo imaginar que tenha sido um grande desafio para a sua carreira. Raul, mais do que um ser humano, tornou-se um ícone, símbolo ou, melhor, um farol para quem tem ouvidos. Digo isso no bom sentido, pois tanto Raul quanto a série acertaram ao não fazerem dele uma figura mística ou messiânica. Coisa que nunca foi. Mas, verdade seja dita, sua arte possui nuances filosóficas, psicológicas e políticas; isso quando não é tudo junto e escancarado. Todavia, é cada um por si. Não existem brechas para a veneração de um ser. E, se houvesse, quão contraditório e tolo seria? Voltando ao grande ator Ravel: sua performance corporal e o seu trabalho de voz são primorosos. Mas a sua maior conquista foi ter capturado e apresentado Raul com o olhar. Sempre buscando, questionando, ansioso, nômade.

Raul é quase indissociável de Paulo Coelho, um dos maiores escritores brasileiros e proeminentes da atualidade. Dessa forma, devo dizer que a série construiu muito bem a relação de amizade entre os dois. Quanto ao ator João Pedro Zappa, é digno de elogios a maneira como incorporou divinamente essa outra criatura inquisitiva. Claro que a dinâmica como compunham teve lá uma certa liberdade artística. Naturalmente um complementava ao outro, mas não ao ponto de um grande clássico ficar pronto em instantes. Entretanto, essas interações criativas são espetaculares!

Há de se oferecer um parágrafo para todo o cuidado que a produção destinou ao figurino, maquiagem e aos demais aspectos atrelados às décadas de 60, 70 e 80. Quem acompanha de fora logo se vê mergulhado nessa época sem grandes dificuldades. E outro ponto digno de nota foram os momentos em que as músicas de Raul se encaixavam dentro do que era proposto, mas também deixavam uma margem para o que viria a seguir.

Essa série também abordou, como não poderia ser diferente, que escolhas trazem consequências. O abuso de drogas, álcool e psicoativos fere quem usa e quem está no entorno. Raul experimentou o céu e o inferno. Foi uma escolha muito acertada retratar os excessos e os efeitos na vida do cantor. Apesar dos pesares, inúmeras pessoas buscaram reerguê-lo, tais como as próprias companheiras que estiveram por perto, admiradores irrestritos, e músicos honestos (no que diz respeito à veneração), como Marcelo Nova.

Acompanhar a mente febril de Raul é um desafio substancial. Não à toa, somos brindados, por vezes, com situações oníricas, psicodélicas e desnorteantes. Uma das inúmeras qualidades apresentadas pelo roteiro e direção. Uma homenagem mais do que justa a essa mente conturbada.

Conturbada sim, mas ouça Raul. Ele oferece uma abordagem totalmente aplicável para qualquer momento do dia. Nada de respostas. Apenas questionamentos, tais como os promulgados por Sócrates (uma grande mosca para Atenas). Apesar das falhas inerentes a um ser humano… nós temos a arte. E, para todos os efeitos, como diria Raul: “Os homens passam, as músicas ficam”.

Douglas Rocha

Biólogo, mestre em Bioética e professor. Mineiro que curte a natureza, o campo e as coisas simples. Em outras palavras, sou um hobbit. Precisou de mim? Te carrego até Mordor! Só não vá esquecer o cachimbo!!!

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