“The Boys”: uma série honesta e corajosa!

O programa mostra de forma crítica como a sociedade atual se encontra doente
A série “The Boys” encerrou a sua quarta e penúltima temporada marcada por polêmicas, com pessoas criticando a abordagem política da história e deixando de acompanhar o programa, o que levou à perda de parte da audiência.
Porém, nada disso abalou a qualidade do roteiro e das atuações. Em nosso olhar, a série manteve intactas duas de suas maiores virtudes, entre tantas outras: a honestidade e a coragem.
Vamos a primeira delas, a honestidade. Porque essa série nunca enganou os seus espectadores.
Desde o primeiro episódio, ela foi uma série política. O que não é novidade no mundo dos super-heróis, que sofreu muitas mudanças desde a sua criação com o Superman, em 1938.
Entre as décadas de 30 e 50, as histórias dos superseres refletiam as características da sociedade estadunidense – algumas nada elogiáveis – e seus valores, sendo que alguns desses eram pregados mas nem sempre postos em prática.
Podemos citar alguns exemplos dessa época.
A Mulher-Maravilha, mesmo sendo mais poderosa que alguns de seus colegas, não ia para as missões, atuando como secretária nas primeiras histórias da Sociedade de Justiça. Durante a Segunda Guerra, personagens como o Capitão América, Superman e Batman, atuaram no conflito e não raro seguravam a bandeira do país nas capas das revistas, no chamado esforço de guerra. Os Jovens Titãs enfrentavam bandidos que ameaçavam a moral dos jovens. Sem falar que durante a década de 50 os quadrinhos sofreram um duro golpe, com o “Machartismo”.
Nas décadas de 1960 e 1970, os quadrinhos de heróis continuaram a refletir as mudanças sociais e políticas dos EUA, um país repleto de acontecimentos, como a luta pelos Direitos Civis, a Guerra do Vietnã, a Corrida Armamentista, a Corrida Espacial, a emancipação da mulher, a contracultura, entre tantos outros fatos, que viraram pano de fundo para as histórias.
A Marvel, nascida praticamente em 1961, apresentou essas transformações de maneira quase que natural enquanto a DC, com personagens mais “tradicionais”, teve que se reinventar e seguir o fluxo dos novos tempos. O resultado foi o surgimento de heróis negros protagonistas (como o Pantera Negra, Raio Negro, Luke Cage, Tempestade), da discussão do preconceito nas tramas dos X-Men, no debate sobre o papel da Mulher-Maravilha na questão feminista, do armamentismo do Homem de Ferro, que posteriormente abandonaria a indústria bélica.
E foi no fim da década de 1970, que os quadrinhos perderam de vez a sua ingenuidade, com a morte de Gwen Stacy, namorada do Homem-Aranha. Os leitores descobriram que havia morte também nas histórias em quadrinhos (algo que foi banalizado na década seguinte, mas que chocou os fãs na época).
Nos anos 80, além dessa perda da inocência, estávamos na chamada “Era Reagan”, na qual heróis nacionalistas e violentos estavam em voga no cinema, representados por atores como Sylvester Stallone, Chuck Norris e Arnold Schwarzenegger.
Nos quadrinhos, alguns heróis como o Justiceiro e Wolverine, quebravam a regra de ouro dos heróis, que é não matar. E obras como “Watchmen” e “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, que podem ser consideradas “avós” de “The Boys” nessa temática de desconstrução dos heróis, trouxeram personagens que fugiam totalmente da tradição do super-herói íntegro.
A fonte de inspiração da série, os quadrinhos de “The Boys”, já nos anos 2000, elevou essa desconstrução ao ponto do escárnio: os heróis são pervertidos, desonestos, egocêntricos, perturbados, detestáveis, possuem as mais loucas taras sexuais, entre outros atributos. E ainda são considerados celebridades.
O que os roteiros da série fizeram? Misturaram toda essa perversão, inclusive as taras sexuais, e os desvios de caráter dos quadrinhos originais, com o momento político dos EUA.
“The Boys” mostra, através de alegorias, o que a sociedade contemporânea (não só dos EUA, diga-se) tem de pior: a ovação ao individualismo, o hedonismo, o preconceito declarado com orgulho e a assustadora falta de inteligência crítica de algumas pessoas, que são manipuladas através das redes sociais, que por sua vez são comandadas por empresas bilionárias que estão pouco se lixando pelo seu bem-estar, pelo seu bem-viver.

Dissemos falta de discernimento de “algumas pessoas”, porque muitas delas aderem aos discursos violentos, extremistas e preconceituosos por vontade própria, por realmente concordar com esses valores. Não é à toa que a extrema-direita tem espaço fértil nas redes sociais.
Muito triste, mas real.
E a série é tão certeira em suas críticas, que a falta de inteligência citada na obra teve a sua confirmação na vida real, com a perda de audiência e os ataques de pessoas que possuem os pensamentos típicos dessa extrema-direita.
Para espanto geral de todos, incluindo os produtores, os escritores e os atores da série, essas pessoas não entenderam a mensagem do programa, presente desde o início. Não só não entenderam a crítica política, como não entenderam a perversão dos heróis e a sua falta de ética e de empatia (se a cena do avião não mostrou isso, então a humanidade está realmente perdida).
Se antes para o super-herói ser “bom” era algo que o definia, atualmente ser bom é ser “idiota”, “bobo”, “chato”, “sem graça”.
O reflexo disso é Hughie, que ao tentar a solução pacífica e cordial, é ignorado.
Afinal, no mundo de hoje, por que aturar “a chatice” do Superman se temos a “pro-atividade” do Capitão Pátria, ainda que ele se mostre doentio e psicopata?

Por isso louvamos a honestidade da série, que foi posta desde o primeiro episódio.
E as ácidas críticas sociais não só se mantiveram como foram se ampliando conforme as temporadas foram seguindo. Pois, se nas duas primeiras a discussão ética era focada apenas nos “supers” e no mundo corporativo, na terceira e na quarta ela se estendeu às pessoas comuns.
Existem pessoas manipuladas? Claro. Mas como já foi dito, também existem os que não só concordam como assinam embaixo de todos os absurdos de uma sociedade que se mostra doente.
Se houve perda de audiência, não foi de uma audiência qualificada. Nisso, sinceramente, a série ganhou.
E por último, o elogio à coragem. Porque é preciso de muita dessa virtude para jogar na cara da sociedade essas verdades, em um mundo de cheio de “cancelamentos”, de críticas pesadas ao extremo, de violência real e digital.
Nesse mundo, onde as pessoas se escondem atrás de uma rede e usam do anonimato para cometer crimes dos mais diversos, para humilhar, destruir a estima alheia sem o mínimo de pesar, tal qual faz o Capitão Pátria.
E tudo isso apoiados por várias empresas, que como a Vought International da ficção, possuem interesse zero na qualidade de vida das pessoas. O que realmente importa é o quanto as suas ações na Bolsa possam se valorizar.
Portanto, parabéns a “The Boys”, por suas duas virtudes.